
MUNDO ADENTRO
Uma viagem de realidades sensoriais pela Serra do Roncador
por Marina Milhomem

“A irrealidade se apossava cada vez mais dos nossos corpos e de nossas mentes, e toda a lenda que nos havia enchido os ouvidos até aquele dia parecia florar em tudo.”
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Lula Côrtes. Paêbirú.
Pare, olhe, escute
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Apoiada no curral, Antônia avisa: “Muita gente cai nesse quebra-cabeça. Aqui é a BR-070 mesmo, só que essa parte não tá asfaltada”. A senhora de pele queimada pelo sol é a única moradora do trecho esburacado e seco, um dos mais difíceis da estrada. A simplicidade de seu nome – Antônia – combina com a expressividade dos galhos secos que guarda para o fogão, as paredes brancas manchadas pela poeira e os olhos bondosos, mas endurecidos. Sua roça fica logo após um córrego repleto de pedras, dessas de fundo de rio, boas de guardar de recordação. É por lá que passam as pessoas que pegam o caminho mais ardiloso para a Serra do Roncador, desde Brasília. Alguns têm costume de acreditar demais no GPS, esquecendo o valor de um bom mapa de papel. Quem cruza o caminho empoeirado de Antônia pode pelo menos ter o coração acalmado pela segurança de suas palavras. De nada serviria se perder se não fossem as boas almas que surgem como entidades.
Solavancos antecedem mais solavancos. Na minha mente errante e inquieta, a Serra do Roncador parece cada vez mais um lugar vivo e pulsante que me testa, que demanda saber o quanto realmente quero chegar. Os olhos percorrem o verde do cerrado ao redor e me levam ao quintal da minha casa, em São Paulo. Penso com preocupação na trepadeira elefante que deixei para trás. A planta fora infestada por pequenos mosquitos verdes que pareciam lhe sugar a vitalidade. Na hora de seguir viagem, sabia que talvez não sobreviveria até a volta. Não sabia ainda que iria vê-la antes disso, mas enrolada na árvore ao lado do meu quarto na serra. As mesmas folhas aveludadas em formato de coração. A mesma sensação de familiaridade. Calmaria.




De volta à rodovia, “Atom Heart Mother”, do Pink Floyd, parece brincar com minhas emoções já muito engasgadas. Vejo – e sinto – o asfalto ao passo que a música se assemelha a uma trilha sonora da vitória, os pneus deslizam com facilidade enquanto os instrumentos de sopro soam eufóricos. Mas a atmosfera rapidamente ganha ares sombrios. Estradas são mesmo feitas de metáforas. O ritmo decrescente que salta dos alto falantes dá o recado de que a felicidade não está segura. O chão cinza tem menos de 100 metros. Os buracos retornam. Em uma lista mental anoto: “Não cante vitória antes da hora”. Fomos pó e ao pó temos de voltar. E ele paira sobre tudo, tornando ainda mais sofrido o calor de todos os sóis. Angústia.
A cada curva dissimulada checo o celular e repito: “Ainda estamos no azul”. A linha, o ponto em movimento e o fundo quadriculado do Google Maps é o mais próximo que tenho de um mapa. Penso no índio terena do poema de Manoel de Barros. O menino procurava um índio que sabia falar azul, mas morava longe. Talvez ele pudesse nos guiar por um caminho que é apenas cor. Na sua falta, resta seguir por terras goianas com os desassossegos guardados no porta-luvas. Abruptamente, uma linha férrea exige o freio. Há um cruzamento no meio do nada e uma placa com os dizeres: PARE, OLHE, ESCUTE. As palavras são do tipo que atravessam.
Tudo parece uma perseguição do horizonte escorregadio. O arrebol quase beijando a pista. A luz solar se esvaindo. Os caminhões cada vez mais rápidos e assustadores. A noite começa a rasgar o céu que fica para trás. À frente, se aproxima o rio Araguaia, um dos muitos que pretendo cruzar, venho cruzando águas desde que saí de casa. Sei que o destino final me espera atrasada logo depois de Barra do Garças, no Mato Grosso.




Na parada em Barra – como é chamada a cidade pelos nativos – jovens bebem cerveja ao lado de caminhonetes das quais ecoa música sertaneja. O sotaque interiorano faz bem aos ouvidos. "Vire à direita depois da terceira rotatória para a BR-158 sentido Nova Xavantina, não tem erro." Erramos. Voltamos, nos achamos para depois nos perdermos novamente. A rodovia é feita de breu e um céu coalhado de estrelas. Olho atentamente todas as placas esperando a que contenha os caracteres KM 730 – um mês depois eu sonharia com as mesmas placas à beira de um rio. A vista cansada, as pernas enlatadas. Com dificuldade, consigo enxergar o portal de concreto que molda a entrada da propriedade de Maurinho do Roncador. Na porteira, os faróis iluminam a placa: "Proibida a entrada de álcool, drogas e pessoas alcoolizadas". Dois cães e um homem vêm ao meu encontro. Finalmente.
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Sonho de criança, realidade de adulto
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É Maurinho do Roncador quem dá as boas-vindas. Algumas poucas lâmpadas iluminam a cozinha que fica do lado de fora, há uma grande mesa de madeira e chão de terra batida. Guiando com uma lanterna e um tom de voz sereno, ele me leva até o quarto. Insetos sobrevoam minha cabeça, a cama de madeira desaba à primeira deitada e a água gelada que sai da bica desencoraja o banho. Pela manhã, nada disso teria a menor importância. A palavra amanhecer parece completamente nova quando se acorda no Roncador.
A extensão da serra e seus enormes chapadões têm início nas proximidades de Barra do Garças e se alonga por aproximadamente 800 quilômetros, até o Pará. Filho legítimo desses cânions, Maurinho nasceu em 1964 no lado mato-grossense, em Barra, onde viveu até se mudar com os pais para Rondonópolis, a 300 quilômetros dali. A casa onde mora hoje fica ao pé de uma totêmica formação rochosa que ganhou o nome de Guardião. Seu pai, um sertanista que passou a vida abrindo caminhos, nasceu no mato e só morreu na cidade porque adoeceu. Sua mãe pensava diferente, queria a urbanização. "Eles se separaram por isso, eu sempre fui mais parecido com meu pai", conta. "Eu era louco pra vir embora pra cá e minha mãe não deixava, eu cheguei ao ponto de fugir, eu não conseguia entender o que me atraía tanto no Roncador. Isso aqui pra mim é um sonho de criança e realidade de adulto."
A história de Maurinho sempre esteve amarrada a estas terras. Não bastava viver perto, ele queria viver dentro. Por vezes, ele lembra Riobaldo, do livro Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa. Lembra pela vontade de ser dono de seu chão, "por posse e continuados trabalhos, trabalho de segurar a alma e endurecer as mãos". Quase acabou no Amazonas em busca de um sonho verde, mas quando voltou ao Roncador para se despedir da família, não saiu mais. Depois de um tempo, o lugar passou a fazer parte de seu nome. Comprou um terreno, quase perdeu para o banco, conseguiu tudo de volta. "Eu sabia que eu teria um período de dez anos que seria obscuro, eu senti isso desde que cheguei aqui. Mas sabia que se eu prosseguisse, teria vitória. Eu sempre pensava 'o sol tá ali e eu vou pra lá'", conta, enquanto o sol brilha amarelado de longe.




Eclipses de beira de estrada​
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"Em 1993 conheci uma pessoa muito sábia que vivia andando pelo mundo​", divide Maurinho entre um gole e outro de chimarrão. O homem viu que ele teria seu próprio pedaço de chão. Com uma casa branca na frente. "Ele disse que eu estaria no meio de uma guerra. Eu imaginei vários aviões voando por cima da cachoeira." Pede-se quietude. "Um ano depois eu comprei o terreno." A casinha branca, derrubou. Não tinha interesse em viver encostado no asfalto. Era fevereiro.
No dia 7 de agosto de 1994 – mesma data em que eu completava dois anos de vida –, Maurinho entrou pelo mato em busca de água para encanar, conta que encontrou uma mina e uma rocha de onde brotava óleo. Ele já tinha ouvido histórias sobre o lugar e sobre um curandeiro que, muitas décadas antes, disse ter sonhado com Nossa Senhora Aparecida. A santa lhe falava sobre a água e o óleo que poderiam ajudar muitas pessoas. "Depois que ele morreu, ali ficou esquecido, ninguém mexeu mais."
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Como pedaço de formiga no chão. Foi assim que ficou Maurinho no dia seguinte, enquanto andava à beira da estrada com o destino de fazer o encanamento. A roda de um caminhão Scania se arrancou. Apenas escapou para o ar. Girou, passou pelas rodas da esquerda e atingiu suas costas. Ele caiu de bruços e, com o facão que carregava na mão, quebrou a mandíbula – que somada a fraturas na coluna, na bacia e nos braços, era o menor dos problemas.
No dia 22 do mesmo mês, sonhou que flutuava depois de sair do corpo. "Não era noite e nem dia, era uma coisa 'meia' clara. Eu ia até o local onde encontrei a água e lá estavam duas pessoas de capuz. Pareciam monges. A gente conversava, eles falavam muitas coisas. Uma delas era: se você beber dessa água, em oito dias você sai da cadeira de rodas e anda." Acordou, tornou a fechar os olhos. Mentalmente refez a conversa, a parte profética dela. Pegou uma caneta, escreveu para o pai, não conseguia falar. "Ele foi buscar a água, eu bebi e no oitavo dia saí da cadeiras de rodas e andei."
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Quando foi ao médico de bengala, ouviu que não acreditavam em milagres. Ao que respondeu: "Eu também não". E continua, "usar a palavra milagre é como usar a palavra mágica, como se fosse instantâneo. Mas, na verdade, eu acredito que isso foi um processo muito anterior ao que eu imaginava". Maurinho acredita em história marcada, nos acontecimentos circulares, na vida como o curso de um rio que precisa desaguar em algum lugar. "O que sucedeu comigo não é que nem 'machucou, caiu, levantou e sarou'. Não. Tem muita coisa envolvida."
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Ter convicção de que as coisas acontecem exatamente como devem parece bastar. "Quando eu me acidentei e não tinha condições de fazer nada, foi meu pai que abriu a fazenda pra mim. Eu não conseguia andar quando ele abriu a picada e foi esticar lona. Na primeira noite que a gente dormiu lá, que ele armou a rede, todo mundo falava que a onça ia me pegar e eu não podia correr. Mas eu dormi mesmo assim."
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"Eu estou saturado
de tantas palavras"




O virar das horas
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A Serra do Roncador é o tipo de lugar que provoca memórias sonoras. As araras em seu diálogo com o sol. Os caminhões que passam na BR com a força da pressa. E o silêncio, não em oposição ao barulho, mas em proximidade ao ouvir do lado de dentro. É o que contém o primordial da linguagem. "Tenho aprendido nesse lugar que o silêncio é a bola da vez. As turbulências estão tão intensas. Estamos passando pelo processo de esvaziar", diz Maurinho, enquanto assiste a uma revoada de pássaros.
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"Na época em que vim pra cá eu gostava muito de ler, mas não devo ter lido nem dois livros no tempo em que estou aqui. Os livros são muito importantes, mas vivo em uma sintonia que não tem barreiras, não há esse limite de aprender." Longe dos prédios, dos relógios e em meio à formações rochosas tão antigas quanto se pode contar, o aprendizado intuitivo parece fazer mais sentido do que formas letradas de enxergar o mundo.
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"Quando as pessoas vêm ao Roncador e tentam ensinar, elas deixam de aprender. Mas quando vêm abertas, sem impor nada, elas são tocadas de uma forma fantástica. De sentido, de vida, de alma, de despertar. O maior ensinamento é o silêncio. Eu estou saturado de tantas palavras."
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A vida de Maurinho nesse meio do nada quase sempre foi só. Na primeira década, as visitas ficavam praticamente à cargo dos amigos que passavam por lá. O turismo, que ainda hoje é escasso, era quase inexistente."Eu já fiquei 30 dias e 30 noites só eu e Deus, sem dar uma palavra com outro ser humano", conta. "Eu não programei nada, só deixei as coisas fluírem. Eu queria ficar sozinho, fiz uma compra e tranquei os portões."
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Ele garante que mesmo se ficasse 22 anos conversando, não conseguiria expressar 10% do que já viveu. E que tudo o que diz é porque vivenciou. "Não tento induzir as pessoas a nada. Não tem essa de 'vem pra cá que eu te curo'. Caminhamos em um plano mais sutil. Falar muito é desnecessário. Querer muito é desnecessário. A ansiedade não faz parte daqui. Do asfalto para dentro se perde toda a referência."
Sempre me admirei de quem vivia no mato, cujos pensamentos eram tão descansados que não precisavam do ruído das máquinas para calar a loucura. Parece uma vida que não amarga com os prazos. "Aqui você não tem mais compromisso com o relógio. E não é que você vai dizer que não quer mais saber dele. O relógio é o relógio, mas você não precisa das horas. Você vai para um tempo fora do tempo."
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Mágico é o raio que não morre
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O sol bravo castiga no momento em que o carro atola. Não é lama o problema, mas areia. O horário faz com que os raios solares sejam mais fortes. Estamos atrasados. O que nos rodeia são milhares de hectares que pertencem ao mesmo homem. Ao longo do caminho para chegar em uma das muitas aldeias Xavantes da região, Maurinho aponta os eucaliptos que, só de olhar da janela do automóvel em movimento, causam vertigem. Toda a área é desmatada. O solo aos pés das árvores está morto, não se vê muito da vegetação do cerrado que deveria estar ali, por nascença e direito. O pássaro que cisca o chão parece solitário.
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Esperar que a ajuda apareça não é boa ideia. Maurinho, que leva meu chapéu de palha, decide andar com Samuel, o Menino Graveto (ele ganhou o apelido por ser comprido e magro), até encontrar outras pessoas. Fico para trás junto com Marcos, um engenheiro do Rio de Janeiro que nos acompanha, e sua filha Clara. Enquanto nos encostamos à sombra de alguns arbustos esparsos, uma vaca sozinha nos olha, e eu dou conselhos a Clara, que está prestes a começar a faculdade. A conversa agrada o pai, que passa a acreditar que o atolamento aconteceu só para que pudéssemos dividir um momento.
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O cenário tomado pela presença humana – a única capaz de devastar para criar pastos e plantações –torna ainda mais pesadas as palavras que ouvimos de Maurinho sobre suas vivências como voluntário da Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Mato Grosso. "Ter vindo pra cá despertou em mim um espírito de ambientalista muito forte." Décadas antes, quando morava em Alta Floresta (MT), divisa com o Pará, era exatamente o oposto. Era garimpeiro. Lá também foi policial militar e evangélico. "Para quem destruía metros e metros de solo em floresta e derrubava imensas árvores, eu mudei muito." Entre as grandes dicotomias que o marcam, a de ter sido assessor de gabinete de um deputado em Cuiabá também assusta. "Eu me olhava no espelho e dava risada." Às vezes se pergunta que tipo de faculdade louca é essa que fez na vida. Conclui que tudo aconteceu assim para alcançar o equilíbrio.
Enquanto esperamos, um carro que leva índios para a aldeia vem ao nosso encontro. Não têm cordas para nos puxar do atoleiro. Aguardamos mais um pouco. Eles retornam, desta vez com Maurinho, Menino Graveto e a cacica Heroína – mulher, anciã e líder indígena. Ela é a primeira a se ajoelhar e cavar a areia com as mãos. Empurramos até que finalmente a emboscada se desfaz. Decidimos voltar e ir a outra aldeia no dia seguinte. No caminho, passamos pelo Vale dos Sonhos, momento em que o Menino Graveto aproveita para contar que foi ele que deu esse nome para o lugarejo. "Não foi, Mauro?" Diz também que queria ser o dono de Barra do Garças. Acompanhamos o sol indo embora na represa repleta de buritizais.
caminhos xavantes...
Houve uma época em que o Brasil Central era um dos lugares mais inóspitos do país. Era muito sertão, muito cerrado inexplorado, enquanto perto do litoral as cidades se desenvolviam em outro passo. Não por acaso os índios Xavantes se instalaram por ali para tentar viver longe do homem branco. Os primeiros registros sobre os A'uwe, como se chamam, contam que eles provavelmente foram se deslocando desde a antiga Província de Goiás, até atravessarem o Araguaia e se concentrarem no vale do Rio das Mortes, no Roncador. Tudo isso entre os urros de conflito do que é, e quase sempre foi, ser indígena em qualquer lugar do mundo. Eles chamaram de Isõrepré (Pedra Vermelha), a aldeia mais antiga que existiu ali, a aldeia-mãe.
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Desse berço nasceram muitas outras, como Marãiwatsédé, próxima ao rio Suiá Miçu, que, nos anos 60, foi tomada para a construção de fazendas agropecuárias. A terra só foi devolvida em 2013. Em 1966, centenas de índios foram convencidos a entrar em uma avião da Força Aérea Brasileira com tudo o que possuíam. Desembarcaram na Missão Salesiana de São Marcos. Foi para lá também que, na década de 70, se mudou o padrinho de um Maurinho ainda menino para trabalhar de vaqueiro. Ele foi junto. Ficaram por seis anos."Lá era comandado por padres. Naquela época tinha lavoura mecanizada, gado, porco..." Razão pela qual lembra com certo saudosismo os tempos dos missionários, em que não via os índios passando fome.
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A ligação com os Xavantes sempre foi, além de afetiva, sanguínea – de certa forma. A avó era índia Gavião. Foi a pé e de jegue do Maranhão até Porto Nacional, no Tocantins, onde se casou com um neto de Xerente, o avô. â€‹É por isso e pelos anos que passou em São Marcos que consegue ter acesso a aldeias e manter contato e amizade com os índios do Roncador. No dia seguinte ao atolamento, ele nos guiou até o cacique Pedro e seu povo.
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Chegar em uma aldeia indígena é como romper um lacre. Sentir o cheiro, o gosto e os abraços. Os olhares que nos recebem nos estudam com uma curiosidade que é mútua. Eles, no entanto, são mais reticentes. Vão se abrindo com cuidado, buscam os presentes que têm para nós, que também entregamos os alimentos que trouxemos. Ganho das mãos de Pedro um colar com uma pequena cabaça pendurada.
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Muitos dos jovens e adultos da aldeia não estão, saíram para um ritual, o que torna ainda mais viva a presença das crianças. A maioria não fala português, mas se comunica por meio de um silêncio eloquente. Sensações são mais ricas que a linguagem. Os pequenos pulam de mãos dadas com sorrisos largos e cantam em seu dialeto. Gostam quando pulo junto. Gostam mais ainda quando mostro as filmagens que fiz. Olham para a tela, olham para mim, sorriem.
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Quando decidimos ir ao lago, o afeto já está lá. Levo Maurinho, Menino Graveto, Marcos e Clara na primeira viagem. Volto para buscar o restante e, no caminho, me sinto imensamente feliz por estar ali, em vez de qualquer outro lugar do mundo. As crianças aguardam eufóricas para entrar no carro. O cacique Pedro vai na frente com duas e o banco de traz vai abarrotado. O percurso é curto, vamos devagar enquanto eles brincam de subir e descer o vidro, falo "cuidado", eles repetem "cuidado!" enquanto dão risada. Eu também acho graça.
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O lugar lembra o rio Corda da minha infância, no Maranhão, onde meu pai me levava. Parece pelo verde, pelas águas límpidas e vegetação ao redor. As meninas Xavantes me olham como se olha para outra menina quando se tem sempre tantos garotos por perto. Brincam de se pendurar nos meus braços e gostam que eu as segure no colo para depois jogá-las de volta no lago. Os meninos se deleitam em me fazer acreditar que há uma onça por perto. Deixo que se fotografem com uma câmera analógica, o barulho do flash causa reações felizes.
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Na volta, Pedro​ me pergunta se já tinha conhecido outros índios, falo sobre os Canela, do Maranhão. "E os Xavantes, bonitos?", diz. Respondo que "sim, muito". À época, ainda não havia lido o que Wily Aureli escreveu em Roncador - Jornada da Bandeira Piratininga: "são realmente bonitos, na mais lata expressão da palavra". "Xavantes são guerreiros", completa Pedro. E temidos, não à toa, quando o explorador Percy H. Fawcett desapareceu na região, muitos acharam que era obra dos índios. Os olhos procuram algo pelo carro, as mãos tateiam alguns objetos. "Tem algo para guardar de lembrança sua?". Entrego o chapéu de palha de explorador que vinha me acompanhando desde Brasília. Ele gosta.
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Antes de irmos embora, Pedro – que benze os raios e a chuva –, fala sobre a espiritualidade Xavante. "Tem espírito da mata, espírito da terra, espírito da abelha, espírito da água, espírito do sol, e o céu. Só. Para curar tem que pedir pra Deus." É econômico nas palavras, que deixam transparecer nuances de ensinamentos católicos. Diz que Deus mostrou algo a ele: "Água limpa, praia limpinha. Bonita água." Maurinho pergunta sobre realidades mágicas, pois o Roncador é um lugar de muitos mistérios. "Mágico pra gente é o raio. Pessoa ruim morre. Raio não morre."
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– Isso é gravador?
– É, para não esquecer de nada
– Pequeninho, tem fita?
– Não tem fita, é digital
– Ahhh, digital
Diz ainda que "dinheiro dá prejuízo. Dinheiro não é bom." E que "chega". Pegamos a estrada de volta.
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Meus olhos levam alguns segundos para aceitar que um dos apoiadores tem o mesmo sobrenome que eu



















Um lugar autoconsciente​
"Ninguém acreditava que eu ia ficar aqui todo esse tempo. Pessoas me diziam: 'se gente com mais dinheiro não parou ali, você vai parar?'", conta Maurinho, durante o último entardecer antes da minha partida. Até mesmo as duas companheiras que teve eram contrárias à vontade de viver no isolamento. "Deixa isso aqui, não tem luz, não tem televisão", é o que costumava escutar. Mas ninguém nunca foi páreo para disputar com o Roncador e a ideia de preservá-lo. Do que brota do chão, sem plantio e sem arado, 60% é baruzeiro – cujo fruto é uma castanha saborosa –, além da sucupira, do jatobá e do pau-brasil do cerrado.
"Não tem uma hospedagem de primeiro mundo ou alimentação de alto requinte aqui. E parece até mesmo que não é para ter." Suas palavras me levam de volta ao meu primeiro contato com o espaço, aos insetos que planavam e à água gelada. É como se o lugar fosse dono de uma rebeldia que apenas o que é feito para ser selvagem possui, no melhor sentido da palavra. "Já recebi propostas de milhões para implantar uma 'disneylândia' aqui dentro. Como se isso fosse a solução e a salvação."
É para tentar peneirar os turistas sem "travar a boiada na porteira", que proíbe bebida alcoólica e jogos em sua propriedade. "Eu percebo o que o local quer, mas ele também filtra 99,9%. E ninguém vem pra cá por acaso." Maurinho acredita na própria sensibilidade para entender o lugar, ao mesmo tempo em que tem consciência de que não controla nada. "O Roncador tem vida própria, muito mais do que a gente pensa. Mesmo que eu quisesse mudar algo, eu não conseguiria. Não é como um cachorro que se doma."
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Certa vez, ouviu Trigueirinho Neto, um conhecido líder espiritual, dizer que a Serra do Roncador possui uma consciência própria. E ainda que não participe de segmentos religiosos e nem goste de cerimônias, as palavras o tocaram o suficiente para repeti-las. O pensamento de que mora em um lugar autoconsciente conduz a forma como vive. "Todas as vezes que vou construir algo, sinto o que devo fazer antes de começar. Eu demoro, tomo chimarrão à tarde sozinho, tento imaginar a melhor opção." Em nada que fez teve instrução de engenheiro, só da intuição.
"Por exemplo, os últimos dois chalés em que estivemos trabalhando. Paguei um cara para fazer os dois, mas quando ele terminou o primeiro, teve um problema de saúde e voltou para Xavantina. Uma semana depois deu um vento e 'dirrubou' a parede de cima. Mandei erguer de novo, na outra semana o vento 'dirrubou' de novo. Falei 'tá bom'. Já tava quase tomado por mato quando senti que era a hora certa de continuar." É como o princípio da não ação - wu wei - do taoismo, em que é preciso o entendimento e aceitação do fluxo dos acontecimentos.
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Maurinho está certo quando diz que "não é necessário ser um monge ou super instruído das energias para sentir." Ele se refere à forma como o Roncador é capaz de se comunicar e se fazer ouvir. De repente a comunicação não fica encurralada nos limites da linguagem. "É notório como há algo diferente, a ponto de ser percebido 'a olho nu'. Claro que cada um tem uma tônica de vibrar, mas aqui rapidamente você se torna parte, se torna vida, perde a ideia de poder."
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Do alto de uma pedra que Maurinho chama de Trono, por conta de uma rocha que naturalmente tomou a forma de uma grande cadeira, o Roncador parece capaz de abrir portais. Deve ser o magnetismo de tudo ao redor. Do chão e dos muitos lagartos que andam por cima dele. Olho para minha sombra e ela me causa a sensação de ter muitas idades. Como um abismo que vai caindo dentro de outro, um para cada ano que vivi. Pareço reconhecer árvores que nunca vi e saber exatamente quando uma arara voará por cima de mim. E como ressoa o canto das araras. No chapéu, tenho espetada uma pena azul e vermelha que encontrei no mato. Perco a noção do tempo – a pele já queimada pelo sol – e ali entendo algo sobre minha passagem por aquelas bandas.
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"Eu acho que estar aqui é mais que uma opção, é merecer. A vida inteira eu sou grato. Parece que todo dia é um dia novo. Eu ficaria uma eternidade." A parte de mim que ainda sente os pés andando por cima das pedras arredondadas do Rio do Ouro consegue compreender, com a devida empatia, uma conexão tão forte com um lugar. É a mesma parte de mim que sabe que não se retorna de viagens que não acabam com a partida. Como bem escreveu Lula Côrtes sobre a Pedra do Ingá no encarte do álbum Paêbirú, "o mistério se estende em tudo e lá continua em seu semi-esquecimento silencioso, provocando apenas tensões em nossos nervos, ânsias em nossos peitos e sons em nossas vidas."